Amândio Ribeiro: A falácia!

a opinião de Amândio Ribeiro
Palavras de Bolso
As alternativas disponíveis ao processo democrático são ditadura ou guerra civil, e nenhuma delas é mais atraente do que o que temos.
O que faz as pessoas perderem o gosto por política, atividade que hoje se encara como algo amargo, coisa necessária, mas nem por isso agradável, foi a profunda, generalizada e descarada desonestidade intelectual dos participantes. O discurso político é uma fonte inesgotável de falácias, onde o espírito de claque organizada esmaga qualquer pretensão de respeito à verdade, à lógica ou à inteligência do ouvinte.
Um político a falar talvez seja aquilo a que o filósofo americano Harry Frankfurt definiu como bullshiter: alguém que não liga se o que diz é verdade ou mentira, e só se importa com a função das palavras como ferramentas manipuladoras de emoção.
É isto que afasta as pessoas da política.
É certo que os politicos não são perfeitos, mas forçoso é que as regras do debate inteligente e honesto sejam respeitadas.
A este desencanto não é alheia a recente onda de escândalos no Governo, que degenerou rapidamente numa série televisiva, usando a falácia para tentar defender-se de uma acusação, não produzindo argumentos relevantes ou evidências, mas dizendo que o acusador também tem culpa no cartório.
Se as pessoas em geral estivessem mais familiarizadas com as regras do discurso lógico e da prática científica, elas provavelmente não engoliriam este tipo de jogo. E os jornalistas que cobrem política ao usarem esse tipo de familiaridade, estão a conseguir serem mais incisivos. Isso pode vir a gerar políticos melhores.
Um dos debates mais acirrados e necessários da contemporaneidade é o da regulação das mídias sociais. Verdade, mentira, pós-verdade, fatos e versões inquietam a humanidade há muito tempo e foram objeto de especial preocupação durante o século 20, marcado por ditaduras, guerras e ideologias em disputa. No regime nazista, a mentira era instrumentalizada por meio da propaganda de massa para consolidar um inimigo externo, os judeus, os comunistas, os “traidores da pátria” e mobilizar a população para o fanatismo e a obediência cega.
A repetição da falsidade visava não apenas a convencer, mas tornar a mentira emocionalmente incontestável. Já no regime stalinista, a manipulação da verdade assumiu outra forma: a falsificação sistemática da história e a eliminação de opositores não apenas fisicamente, mas também dos registros oficiais. Stálin reescrevia a narrativa nacional constantemente, apagando figuras políticas, modificando eventos e ajustando os fatos conforme os interesses do partido, criando uma realidade mutável onde a verdade oficial mudava ao sabor do poder. Se o nazismo utilizava a mentira para justificar a destruição do outro, o stalinismo a utilizava para consolidar o controle absoluto sobre seu próprio povo.
Para Para Hannah Arendt, a manipulação sistemática da verdade não é apenas um instrumento de governo, mas uma forma de remodelação da própria realidade social. No totalitarismo, a mentira não opera como um simples engano ou propaganda passageira, mas como uma nova estrutura de pensamento imposta pela força.
A verdade objetiva torna-se irrelevante diante da repetição incessante de falsidades, e o que se impõe é uma “verdade oficial”, maleável conforme as necessidades do poder. Isto é crucial para compreendermos o fenômeno contemporâneo da desinformação quando a mentira é institucionalizada, os cidadãos não apenas deixam de acreditar nos fatos, mas perdem a capacidade de diferenciar verdade e falsidade, o que compromete a própria possibilidade do debate democrático.
Em 1984, Orwell descreve o uso da novilíngua e da duplipensação como mecanismos de controle social, que não apenas distorcem a verdade, mas criam uma nova realidade discursiva na qual a própria ideia de verdade se dissolve.
O desafio contemporâneo está em evitar que a fragmentação total da verdade torne impossível qualquer forma de consenso racional.
Se Orwell nos advertiu sobre os perigos de um Estado que impõe a verdade, a era digital coloca-nos diante de um dilema oposto: como garantir que a verdade sobreviva no meio ao caos informacional? Essa talvez seja a questão central da democracia no século 21.